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O Brasil e o fim da mandioca

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O alerta foi dado em 1914: “A mandioca é sem vergonha”. Não foi falta de aviso. A raiz dos problemas brasileiros foi exposta por Monteiro Lobato, no conto “Urupês”, denunciando esse “pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O plantio se faz com um palmo de rama fincada em qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem vergonha.”
Essa planta originária da região amazônica, também conhecida por aipim ou macaxeira, aprisionou, por séculos, a eclosão da potência nacional. Arrancada do solo pátrio, basta fincar uma rama no mesmo buraco de onde saiu e, em alguns meses, sem exigir nenhum esforço adicional, você terá outra mandioca crescida no local. Estando disposto a cavar mais alguns buracos, quebre o caule, enterre seus pedaços e, de um pé, se produzirão outros dez. Mas não se iluda com essa aparente dádiva da natureza, que só é dádiva no primitivo mundo dos caçadores e coletores. Na moderna sociedade, essa fonte infinita de alimento fácil, se converteu em atavismo evolutivo, condenando a Nação ao atraso. As “benemerências sem conta da mandioca” roubaram do Brasil a urgência inspiradora, mãe de tantos inventos surgidos nos hostis ambientes distantes daqui, onde a vida humana teimou em se estabelecer. Era por isso que Monteiro Lobato afirmava que não avançaríamos enquanto tivéssemos esse “pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar sobre brasas (…) Há bens que vêm para males. A mandioca ilustra este avesso de provérbio.”
Não foi simples resolver o problema. A mandioca se incrustou em níveis muito profundos da alma nacional. Base alimentar do país, presente em todas as mesas, nas mais diversas formas, sabores e combinações, a mandioca deu identidade a diversas regiões, ligando-as por essa mesma raiz cultural. Do pão de queijo ao tucupi, da farofa à tapioca, do bobó ao cauim – derrotar a mandioca demandava mudança de antigos hábitos alimentares e a construção de uma nova identidade cultural no país.
Como combater uma planta que tanto prejudicava o Brasil e estava ligada de um modo tão visceral aos costumes da Nação? A resposta era mais simples do que se imaginava: com outra planta. Trigo, a base da comida dos países desenvolvidos, veio nos salvar do atraso.
O desenvolvimento de um país, como todos sabem, segue um roteiro único e bem definido. Primeiro, substitua a cultura local pela cultura de um país desenvolvido, copiando também suas instituições. Em seguida, peça a ajuda deles para que o seu país também possa se tornar rico e próspero. Eles não demorarão a enviar técnicos e, até mesmo, dinheiro, se for necessário. Para nossa sorte, esse foi o roteiro seguido aqui.
Quando Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei de Portugal dizendo que havia chegado na terra em que “dar-se-á nela tudo”, ele não deve ter considerado o trigo em sua avaliação. Apesar dos enormes ganhos de produtividade promovidos pela EMBRAPA, o ritmo de crescimento na produção do cereal nunca foi suficiente para suprir o consumo crescente (ainda hoje produzimos apenas metade do que consumimos, o que torna o Brasil um dos maiores importadores globais do produto). Por isso, no início, precisamos de um auxílio externo vindo do programa de ajuda alimentar dos EUA, com a entrada em vigor por lá da Public Law 480, ampliada pelo presidente Kennedy, em 1961. Esse auxílio humanitário nos forneceu créditos de longo prazo para a aquisição do trigo estadunidense, que lá se avolumava pelas constantes supersafras da commodity produzidas naquelas terras abençoadas. Com isso, o consumo per capita de trigo no Brasil aumentou rapidamente, alimentando nosso veloz processo de urbanização com o surgimento de milhares de panificadoras em todos os cantos do país.
Vencemos a mandioca! Foi um processo duro, demorado e, principalmente, caro, mas vencemos. E não foram poucos os sabotadores que apareceram nessa guerra – os tradicionais partidários do atraso que vivem presos em seus sonhos impossíveis. As leis do mundo econômico são simples e claras, como descritas dois parágrafos acima. E não me venha falar em deficit comercial! O constante deficit que essa mudança alimentar sempre causou foi um preço baixo para nos livrarmos do entrave vegetal que impedia o desenvolvimento do país. Nos modernizamos finalmente. Nada mais de beiju. Somos tão modernos como os italianos e suas pizzas, tão refinados como os franceses, comendo baguete, croissant e pão, que, aqui, ganhou o nome de “francês”, para que nunca esqueçamos nossa guerra particular e nossos objetivos maiores.
Mas é impressionante como os saudosos da velha ordem não desistem. Hoje mesmo, em pleno ano de 2018, temos um pré-candidato à presidência da República que repete, por todos os cantos do país, seu mantra do “pão é trigo e trigo é dólar”, tentando gerar desconfiança na população de que a nossa guerra pela modernização do país foi desnecessária, cara e infecunda. Vocês acreditam nisso?
E ele não vem só. O possível vice em sua chapa tem suas digitais na luta contra a revolução tritícola no país. Em 2001, o então deputado veio com essa: de posse de um estudo que provava que a adição de 10% de farinha de mandioca refinada na farinha de trigo não alterava em nada suas qualidades culinárias, resolveu propor uma lei que obrigava esse acréscimo na farinha de trigo vendida aqui (PL 4.679). Obviamente, a mídia, ciente de todo o esforço despendido para nos livrarmos dessa amaldiçoada raiz, deu o troco à altura, ridicularizando o deputado por todos os meios possíveis e impedindo a votação da tal lei. O deputado insistia, dizendo que a qualidade da farinha de trigo não seria alterada, que essa mudança beneficiaria a agricultura familiar, de onde provinha quase toda a produção de mandioca do país, e que isso diminuiria o deficit na balança comercial ao substituir parte do trigo importado por um produto feito aqui. Ou seja, ele fingia não saber que se tratava de uma guerra e, não, de uma conta de planilha.
Derrotado no primeiro intento, continuou empenhado em sua conspiração. Algum tempo depois, como presidente da Câmara dos Deputados, criou uma comissão para avaliar a matéria, que dispensaria votação em plenário para a aprovação. E vocês acreditam que a maioria dos 29 deputados que compunham a Comissão estavam prestes a votar a favor dessa sandice?!
A ação precisou ser rápida. O maior moinho do Brasil ameaçou se transferir para a Argentina, caso a modificação fosse aprovada, e as organizações ligadas ao setor de panificação pressionaram os deputados que estavam na Comissão. O valente presidente da ABIP (Associação Brasileira das Indústrias de Panificação) ainda denunciou o espírito intervencionista da lei, dizendo que “a obrigatoriedade comprometeria o tradicional pão francês. Sem que a adição seja impositiva, o setor de panificação poderá vir a criar o ‘pão brasileiro’, que poderia ser produzido com amido de mandioca no lugar da farinha de trigo.”
No fim, selou-se um acordo bom para todos: ninguém seria obrigado a seguir a lei e tudo continuaria como antes. O ‘pão brasileiro’ continuou inofensivo, alimentando apenas o mundo da retórica.
A batalha foi ganha, mas a guerra continua. Os sabotadores não descansam. Confundem a cabeça da população. São obcecados pela ideia de salvar o inimigo, reverter as mudanças feitas a duras penas e impedir a erradicação desse veneno espalhado em nossas terras. Vez por outra aparece alguém com uma suposta “inovação” saída da mandioca, dando sobrevida ao vegetal. Isopor biodegradável (e até comestível – que nojo!), biocombustíveis, remédios, cosméticos e novas receitas culinárias (naturalmente, sem o precioso glúten).
Em 2017, tivemos uma boa notícia. A mandioca foi eleita, pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o alimento do século XXI que, além de saudável, será usado no combate à fome. É a chance que precisávamos para completar nossa modernização e nos livrarmos do atraso exportando-o aos atrasados.