A tradição política dos Samba-Enredos
Diz a história que o ano de 1932 foi aquele que sediou o primeiro Desfile de Escolas de Samba do Rio de Janeiro, organizado pelo jornal Mundo Sportivo. O prefeito interventor do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, que participou ativamente do movimento tenentista na década de 20, foi filiado ao Partido Autonomista e ligado a ANL, negociou o reconhecimento e apoio das escolas por parte da prefeitura do Rio em troca de uma regra: que os desfiles contassem a história do Brasil.
Deste movimento nasceram os “enredos” dos desfiles, e posteriormente os “samba-enredos”. Desde então, os desfiles de samba têm contado a história brasileira. Ao longo da Era Vargas a ideologia do Estado Novo foi convertendo o samba de música estigmatizada das favelas para o ritmo oficial da nação brasileira, sendo o Carnaval o seu momento de ápice cultural.
Como todos os anos mensagens, memes, e textos imbuídos de falso “pensamento crítico” insistem em mostrar, o Carnaval, o Samba e em particular os Desfiles das Escolas ainda sofrem com o preconceito. Este preconceito vem em particular daqueles membros de classe média branca (de direita e de esquerda, é bom lembrar), descendente de europeus, que gostam de afirmar sua ascendência europeia como uma origem cultural superior à da maioria dos brasileiros.
Apesar disso, ao longo da história os samba-enredos sempre foram fonte de reflexão e crítica política. Uma expressão cultural produzida a partir da associação entre grandes compositores oriundos das classes médias, e músicos e dançarinos nascidos nas favelas. Uma representação da união das classes brasileiras em torno do maior produto cultural produzido pela nação, que a despeito do duradouro preconceito aqui dentro, se tornou a marca do país no mundo.
Desse jeito, a tradição política desta grande festa cultural se expressou em sambas como: “Quilombo dos Palmares” (Salgueiro, 1960) e “Chico Rei” (Salgueiro 1964) que falaram sobre a questão negra. “No Tronco do Ipê” (Portela, 1968) falou de diferenças sociais e da violência do Estado. “Heróis da Liberdade” (Império Serrano, 1969) foi censurado pela ditadura e durante seu desfile aviões da aeronáutica voaram sobre a Avenida, que estava sitiada sob forte aparato policial. Na apuração das notas, confusão provocada pela polícia.
No ano de 1988, comemorando 100 anos da Lei Áurea, “100 Anos De Liberdade, Realidade Ou Ilusão?” (Mangueira, 1988) e “Kizomba, festa da raça” (Unidos de Vila Isabel, 1988) trouxeram novamente a questão negra, sendo o samba da Mangueira mais carregado de crítica social. “E Por Falar em Saudade… (Caprichoso de Pilares, 1985) e “Eu Quero” (Império Serrano, 1986) aproveitaram a decadência da Ditadura Militar para escancarar a desigualdade social e pedir a volta da democracia no país.
Como é conhecido entre os estudiosos do samba, os anos 90 e 2000 foram marcados por uma decadência relativa dos samba-enredos, que perderam bastante em qualidade e sofisticação. Carnavalescos como Paulo Barros levaram o carnaval a deslocar seu enfoque dos samba-enredos para se tornarem espetáculos visuais, carregados de tecnologia. Com isso, as críticas sociais e a tradição política se arrefeceram.
Um dos últimos desfiles mais politizado foi “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia” (Beija-Flor, 1988), de Joãozinho Trinta, que teve um carro censurado ao mostrar o Cristo Redentor em meio a pobreza e aos ratos, e ao levar mendigos para a Sapucaí sob a placa “Mendigos, a Sapucaí é Vossa”. Este desfile serviu para remover a imagem de “chapa branca” da escola, que durante a ditadura fez sambas como “Educação para o Desenvolvimento” (1973), “Brasil Ano 2000” (1974) e “Grande Decênio”, todos elogiosos ao regime dos militares.
Em 2018 retoma-se a tradição e Tuiuti emerge vitoriosa
No Desfile de 2018, esta tradição política do carnaval carioca foi retomada com vigor. A Salgueiro com “Senhoras do Ventre do Mundo” trouxe à tona a questão da mulher negra, a Mangueira com “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco!” fez uma crítica ao corte de recursos ao carnaval promovido pelo prefeito Marcelo Crivella, e a Beija-Flor, com “Monstro É Aquele Que Não Sabe Amar” usou da história de Frankenstein para criticar de forma ampla a corrupção e a intolerância no país.
Mas a escola que realmente ganhou o coração do público foi a Paraíso do Tuiuti, que fez um desfile que certamente se tornará antológico. “Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão?” fez uma análise histórica impressionante, afirmando o legado da escravidão como o problema central da nação brasileira, criticando o trabalho escravo em setores tão distintos quanto campo e a indústria da moda, e concluindo seu desfile criticando abertamente a Reforma Trabalhista, o avanço do emprego informal, e a sanha sanguessuga das políticas neoliberais de Temer e aliados.
A leitura que a Tuiuti fez sobre os problemas políticos do Brasil do passado e da atualidade é sofisticada e muito profunda. Vai ao cerne da luta contra a desigualdade social, e soube responsabilizar a elite brasileira e seus “manifestoches” pela nova escravidão pela qual passa o povo brasileiro. A leitura completa, que liga o país da escravidão ao golpe de 2016, remonta a crítica ácida presente no livro “A Elite do Atraso – Da Escravidão a Lava Jato”, de Jessé Souza, citado na bibliografia da escola.
A crítica do Paraíso do Tuiuti, com todo respeito às escolas anteriores, falou do que é a questão política central da atualidade brasileira. Sua ameaça ao establishment foi tão severa que tirou as palavras dos comentaristas da Globo que passavam o desfile ao vivo e a cores para o Brasil e o mundo. Por outro lado, seu samba-enredo, seus carros alegóricos e suas fantasias foram tão fortes que arrancaram milhares de comentários do povo nas ruas, nas redes sociais e na própria Sapucaí. A arte dialogou com a política de forma precisa e brilhante.
Devido a situação que vive o país e ao clamor político vistos nesse carnaval, fazia-se necessário que uma escola com “conteúdo político” fosse eleita a campeã. Aí entrou o enredo da Beija-Flor, que centrou sua “crítica” no discurso moralista vago, que responsabiliza a desigualdade na corrupção, e não no projeto político em curso. Este discurso, aliás, tão disseminado pela Globo, foi um dos principais responsáveis por nos trazer ao desastre atual e a politização absoluta do Judiciário, tomado atualmente pelo “Partido da Lava Jato”.
A escola soube combinar este moralismo com maestria ao discurso de “tolerância” do identitarismo, que como todos sabem, vem ganhando o establishment mundial e, mais recentemente, nacional. Os neoliberais têm usado das bandeiras identitárias para fragmentar a luta social (“dividir para governar”), relegar a questão nacional a segundo plano, e aparentar algum “progresso social” enquanto a barbárie neoliberal avança sob nossas vidas.
Não é coincidência a presença dessas agendas em programas como “Encontro com Fátima Bernardes” e “Amor e Sexo”, da Rede Globo, de altíssima audiência. E também nos discursos de presidenciáveis como Marina Silva e Luciano Hulk, que com ar de modernidade e progressismo visam manter a barbárie neoliberal em curso no país.
Estes elementos fizeram com que a Beija-Flor fosse escolhida vencedora pelo establishment brasileiro, por um décimo de diferença. Não faz mal, a escola que retomou com vigor a tradição crítica do carnaval continua sendo a Paraíso do Tuiuti, que foi a mais citada nas redes e enquetes da internet, e foi aclamada como a Campeã do Povo. Seu samba e seu desfile continuarão ecoando pela história como marcos na cultura e na luta política brasileiras, e sua disputa com a Beija-Flor deverá ser reeditada na feroz disputa política desse ano, decisiva para os destinos da nação.