O ARTIGO PROJETO NACIONAL E O CURRÍCULO DO AUTOR
Nessa última terça-feira, 09/11/2021, o Estado de São Paulo publicou artigo intitulado Projeto Nacional, de autoria do seu colunista Pedro Fernando Nery. Apresentando-o aos poucos que não o conhecem, o renomado economista é também colunista da Gazeta do Povo e publicou em co-autoria com Paulo Tafner, o livro Reforma da Previdência: Por que o Brasil não pode esperar. No final do primeiro semestre desse ano, figurou entre os 70 principais comentaristas de Economia no ranking elaborado pela Universidade John Hopkins, sendo o 63º com maior número de seguidores no Twitter e 59º com mais interações nessa rede social.
Formou-se em Ciências Econômicas e fez seu mestrado e doutorado em Economia na Universidade de Brasília (UNB). O curso de Ciências Econômicas da UNB é bastante bem reconhecido nacionalmente, tendo obtido a 11ª colocação no Ranking Universitário Folha (RUF) em 2019, e aparecendo entre os sete melhores entre as universidades públicas. Muitíssimos qualificados também são os cursos dos programas de pós-graduação na área da Economia da universidade.
A DÚVIDA SOBRE O QUE É O PROJETO NACIONAL DE CIRO GOMES
Contudo, qual a necessidade e relevância de se analisar o currículo do autor? Longe de se desejar apelar para uma argumentação ad hominem, todavia, em virtude da alta qualificação proporcionada pela UNB e do seu invejável currículo, justifica a causa de estranheza e surpresa que um ilustre egresso da universidade confesse desconhecimento de um conceito tão simples como Projeto Nacional de Desenvolvimento (PND), cujos casos aplicados na economia brasileira são por demais estudados, sobretudo por economistas. Ao afirmar em seu último texto que “A pré-candidatura [de Ciro Gomes] propunha um ‘projeto nacional de desenvolvimento’. Também não sei o que é isso”, à primeira vista, dá margem à interpretação de duvidar se de fato é ínscio quanto ao que significa a expressão, ou está assumindo uma posição refratária. Certamente, no caso de um economista de tamanha expressão, é altamente improvável ser um apedeutismo de sua parte, restando, portanto, a alternativa de se tratar de uma atitude obscurantista do gabaritado profissional.
OUTROS CASOS DE PND NO BRASIL
Antes do PND de Ciro Gomes, os exemplos mais marcantes foram o Projeto Nacional de Vargas (1937-1945), o Plano de Metas de JK (1956-1961), e o II PND (1974-1979) no Governo Geisel, ambos citados no livro de Ciro. Convém reiterar, cases estudados devidamente aprofundados em qualquer manual de economia brasileira utilizado em cursos de graduação em Ciências Econômicas. Por isso, não impõem qualquer dificuldade significativa de compreensão para pós-graduados em Economia, fundamentalmente egressos formados e de programas da área bem ranqueados no país.
Apenas a título de ilustração, no manual Economia Brasileira, organizado por Antônio Correa de Lacerda (ex-presidente do COFECON) e outros professores da PUC/SP, quando descrevem o Estado Novo (1937-1945), explicam aquele período haver uma “tentativa de afirmação de um projeto nacional, no qual caberia ao Estado assumir o papel de indutor do desenvolvimento industrial, quer implantando agências governamentais para a regulação das atividades econômicas, quer estabelecendo uma nova legislação trabalhista, quer ainda assumindo o papel de produtor direto” [grifos meus]..
A IMPRECISÃO DO QUE É PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO
Nery revela que até leu partes do livro Projeto Nacional: O Dever da Esperança, de Ciro Gomes. Porém, alega que “a expressão [projeto nacional de desenvolvimento] já foi usada tantas vezes, por tanta gente, que não parece ter um significado claro”. Compactuo parcialmente dessa impressão do colega, no entanto, o mesmo pode ser dito a respeito de outros tantos conceitos relevantes, como democracia, progressismo, liberalismo, bem-estar, etc, igualmente sujeitos a diversas interpretações dado o seu largo uso que causa forte imprecisão nas suas aplicações.
A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO
Em artigo publicado no IPEA, “Desenvolvimentismo: A Construção do Conceito”, Pedro Cezar Dutra Fonseca expõe que diversos conceitos econômicos, um problema comum às demais ciências sociais, “muitas vezes não conseguem escapar de nuances que lhes impingem certa vagueza e ambiguidade”. Se por um lado, a “plasticidade e flexibilidade” de um conceito confere maior acessibilidade de compreensão, bem como incorporam mais facilmente o surgimento de novos fatos.
Para determinar mais especificamente a definição de Desenvolvimentismo, Fonseca emprega a análise de extensão e intensão dos conceitos. Por extensão, compreende-se o sentido denotativo, apontando em que objetos ou fenômenos um conceito é empregado para designá-los. Quanto à intensão, revela o seu significado conotativo, indicando que propriedades ou atributos são englobados pelo conceito; revelando “certas características comuns que permitem objetos serem nomeados como tal”.
O LARGO USO DO TERMO PND
À medida que se eleva a extensão de um conceito, em contrapartida, este acaba reduzindo o seu grau de intensão, e o inverso se torna verdadeiro. No caso da expressão “Projeto Nacional de Desenvolvimento”, assim como apresentado por Ciro Gomes em seu último livro, a mesma também foi empregada pela presidente Dilma Rousseff, quando ainda candidata, apresentou um documento com 13 compromissos programáticos em outubro de 2010, dentre eles, como bem lembra Nery, “Dar seguimento a um projeto nacional de desenvolvimento que assegure grande e sustentável transformação produtiva do Brasil”. Outro exemplo citado pelo autor é o projeto de nação defendido pelo General Villas Boas em instituto que leva o seu nome.
EXTENSÃO E INTENSÃO DO TERMO PND POR CIRO GOMES
Por conseguinte, na linha de raciocínio seguida por Nery, Projeto Nacional de Desenvolvimento é um conceito tão amplo em extensão que incorre, consequentemente, na perda de sua intensão. Ocorre que, ao contrário de Dilma e Villas Boas, que abordam muito superficialmente, Ciro Gomes discorre o seu projeto muito mais detalhadamente, com diretrizes e propostas descritas, atribuindo maior intensão ao conceito com precisão, superior tanto ao documento supracitado de Dilma, como ao site do general. São materiais que não se comparam à profundidade conferida por um livro. Certamente, Nery sabe disso, pois abordou o tema Reforma da Previdência como poucos.
OBJETIVO E RECONHECIMENTO DO LIVRO PROJETO NACIONAL
Ademais, o livro de Ciro Gomes não se trata de uma obra de cunho técnico ou acadêmico, mas uma publicação basicamente com a intenção de, através da divulgação e compartilhamento de sua experiência acadêmica, profissional e política, sustentar com a credibilidade requerida a defesa de um projeto nacional voltado ao desenvolvimento socioeconômico do país.
O livro vem sendo examinado e debatido desde então, tendo sido formados diversos grupos de estudo por profissionais de formações das mais variadas, e que se saiba, não expuseram nenhum grande obstáculo para absorção das ideias e propostas contidas nessa obra. Um indicativo de que o livro vem sendo bem recebido é a notícia recente de que Projeto Nacional: O Dever da Esperança, de Ciro Gomes, está concorrendo ao 63º Prêmio Jabuti de 2021. Aparece entre os 10 finalistas na categoria Ciências Sociais, a qual inclui diversas disciplinas, dentre as quais a própria Economia, área de conhecimento inclusive da formação.do colunista do Estadão.
O RISCO DE CORRUPÇÃO EM PROJETOS NACIONAIS
Logo, por ser uma obra que se popularizou rapidamente, e vem sendo reconhecida pela crítica literária, não restam dúvidas da qualidade de seu conteúdo. Mas outros apontamentos de Nery merecem receber a devida atenção. Por exemplo, o risco de corrupção em projetos nacionais de desenvolvimento, uma vez que, de acordo com o autor, “esses projetos costumam ter, além de boas intenções como fim, a distribuição de dinheiro público como meio”.
A CORRUPÇÃO NOS ÚLTIMOS 40 ANOS
Novamente, esse não é um risco exclusivo de projetos nacionais. Sem nenhum projeto similar nos últimos 40 anos, tivemos dois presidentes eleitos que sofreram impeachment (e o atual que acumula mais de uma centena de pedidos) e diversas denúncias e esquemas de corrupção, como o esquema PC Farias no Governo Collor, compra de votos para aprovação da emenda da reeleição, em 1997 e irregularidades nas privatizações (“Privataria Tucana”) do Governo FHC, o Mensalão no Governo Lula, a Lava-Jato – inclusive com os ex-presidentes Lula e Temer entre os investigados – e o Petrolão no Governo Dilma, e mais recentemente, a denúncia de propina na compra de vacinas no Governo Bolsonaro. Se a corrupção é um mal que aflige o país há várias décadas, sem nenhum projeto nacional de desenvolvimento em curso, não faz muito sentido o risco de corrupção ser um impeditivo para implantá-lo.
O APRENDIZADO NA ELABORAÇÃO DE PROJETOS NACIONAIS
Finalmente, Nery conclui seu artigo com a expectativa de que a expressão Projeto Nacional de Desenvolvimento “ganhe significado”, mas principalmente, como responderá “às nossas tentativas que deram errado”. Qualquer projeto ou plano passa por isso. O Plano Real, maior e mais exitoso plano de estabilização da história do Brasil, foi antecedido de diversas iniciativas no período 1986-1993 que não lograram o mesmo resultado. Inclusive, foram justamente as suas falhas (congelamento de preços, desequilíbrio fiscal, descontrole da demanda, etc.), bem como os seus acertos (como a formação de reservas cambiais), que serviram de inspiração e de exemplo para a formulação do Plano Real. O mesmo pode ser feito em relação a um Projeto Nacional de Desenvolvimento, adaptado às necessidades e contextos atuais do Brasil.
A IMPORTÂNCIA DO AUTOR DE UM PND
Concluindo, a alegada incompreensão do conceito ou dúvidas e receios na adoção de um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, levantadas por Nery, são preocupações pertinentes, e reitero que merecem atenção pelas autoridades que pretendam implantá-lo no país. Em que pesem essas considerações, não vejo por outro lado que se tratam de obstáculos intransponíveis, sobretudo para lideranças políticas preparadas que se dedicam ao tema já a algumas décadas, culminando na elaboração de um projeto nacional bem detalhado sob a forma de um livro, como no evidente caso de Ciro Gomes.
PORQUE O PND DE CIRO MERECE UMA ANÁLISE APROFUNDADA
Não cabem que se infiram ilações de incapacidade de entendimento, por exemplo, do Projeto Nacional defendido por Ciro Gomes, mormente por um influente economista com doutorado na área, colunista de um jornal como o Estadão. Tenho a absoluta certeza de que se o colega, caso se dedique a ler mais do que apenas “alguns trechos” de Projeto Nacional: O Dever da Esperança, de Ciro Gomes, terá uma melhor compreensão do que propõe, e até teça críticas mais elaboradas e aprofundadas das propostas contidas nele. Com muita boa vontade e excelente nível de análise, foi como já fizeram outros economistas notoriamente consagrados, como os professores Paulo Gala e André Roncaglia. É o que se espera de alguém do gabarito e estirpe do colunista do Estadão.