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O PND de Ciro Gomes versus o complexo de vira-lata dos neoliberais – Parte 1

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VÍDEO DE PEDRO DORIA E A DIVISÃO DA DIREITA

No Canal Meio, no dia 02 de dezembro, o destacado e talentoso jornalista e escritor Pedro Doria, um dos melhores da sua área na atualidade, publicou um vídeo intitulado “Essa eleição dá pra Ciro?”. Nele, oportuniza importantes reflexões e apontamentos sobre a viabilidade da candidatura de Ciro Gomes à presidência da República. Dentre vários pontos, ressalta que no campo da direita, a tendência é que se tenha uma forte divisão: Bolsonaro (PL), Moro (PODEMOS), Doria (PSDB), Mandetta (UB), Rodrigo Pacheco (PSD), Vieira (CIDADANIA) e D´Ávila (NOVO).

O PRINCIPAL ADVERSÁRIO DE CIRO É LULA?

Por outro lado, na esquerda, em princípio, existem apenas duas candidaturas: Lula (PT) e Ciro Gomes (PDT). Doria argumenta que Ciro tem focado nas críticas mais a Lula e ao PT, porque seria na realidade o seu principal adversário. Mas o que sustenta essa tese do jornalista? É porque em todas as eleições anteriores, desde a redemocratização, tivemos disputas eleitorais sempre com algum candidato representante da direita e outro da esquerda (em negrito, os vencedores de cada eleição): Collor X Lula (1989), FHC X Lula (1994 e 1998), Lula X Serra e Alckmin (2002 e 2006), Dilma X Serra e Aécio (2010 e 2014) e Bolsonaro X Haddad (2018). Uma disputa bem equilibrada, com quatro vitórias de cada lado.

O canal Politizando, do YouTube, faz um contraponto providencial a essa visão apresentada por Doria, uma vez que faltando 10 meses para as eleições, é muito difícil afirmar que 2022 será uma mera reprodução dos embates anteriores. Ademais, pontua acertadamente que Ciro tem baixa rejeição, possui o segundo maior potencial de voto (atrás apenas de Lula) e apresenta um projeto que dialoga exatamente com maior preocupação da população, a dizer, o estado de calamidade da economia brasileira (recessão, desemprego, miséria, fome, etc.).

SERIA CIRO UM NACIONALISTA?

A despeito de ser liberal, Pedro Doria faz um elogio significativo a Ciro Gomes, quando destaca o seu respeito à democracia ao ter publicado um livro, fazendo um diagnóstico e apresentado as suas propostas. Segundo ele, a pouca valorização dessa iniciativa de Ciro mostra o quanto é desestruturada a nossa democracia.
Mas o ponto mais polêmico de seu vídeo, e que suscitou mais reações contrárias, foi sua crítica ao nacional-desenvolvimentismo. De acordo com Doria, o historiador Yuval Noah Harari argui que a dicotomia mais relevante na política atualmente não será entre direita e esquerda, mas entre cosmopolitas e nacionalistas. Conforme o jornalista, cosmopolitas creem que os problemas devem ser resolvidos globalmente. O dinheiro é digital e esse processo só vai se acelerar. Já os nacionalistas defendem medidas que exigem que o Estado intervenha por meio de políticas setoriais, para tentar enfrentar os efeitos adversos da globalização, como o desemprego. Na visão de Doria, a perspectiva cosmopolita é mais adequada para o atual contexto mundial, e portanto, deveria servir de modelo de políticas para o Brasil.

POLÍTICAS DESENVOLVIMENTISTAS NÃO TERIAM DADO CERTO

A defesa da diretriz cosmopolita reside na tese de Pedro Doria, que a herança deixada após o esgotamento do Processo de Substituição de Importações (PSI), em meados dos anos 1980, fora uma indústria de péssima qualidade e pouco competitiva. Logo, após um processo de desindustrialização e desnacionalização em curso iniciado no início dos anos 1990, os resquícios de nosso setor industrial requereriam um grande impulso para dar vazão a um crescimento econômico sustentável e a uma elevação na diversificação e valor agregado de nossas exportações.
Dentro da concepção cosmopolita apregoada por Pedro Doria, a produção atualmente é global, em que é comum que um produto tenha seus componentes fabricados em diferentes partes do mundo, como um aparelho de celular da IPhone. Nesse caso, uma vez que a sua estrutura produtiva não é tão diversificada e qualificada, melhor seria o Brasil se especializar em segmentos em que apresenta melhor competitividade internacional, no caso, os ligados à agropecuária ou agronegócio, do que estimular o setor industrial por meio de intervenções estatais guiadas por políticas nacional-desenvolvimentistas. Um exemplo dado por Doria seria a produção de softwares para atender a produção agrícola.

A PRODUÇÃO É GLOBAL, A PROPRIEDADE É NACIONAL

A primeira reação ao vídeo do Canal Meio foi do também destacado e talentoso professor de Economia, André Roncaglia, em seu canal no YouTube. A sua crítica mais contundente se refere à tese de que, numa visão cosmopolita, o Brasil deveria se concentrar na produção de bens mais simples, em que o país teria maior competitividade no exterior. Roncaglia concorda que a produção é global, mas em que pese a produção ser por meio de uma cadeia global de valor, a propriedade permanece sendo apenas de uma empresa, detentora do produto final. Ou seja, o processo de produção é global, mas a propriedade da produção é nacional.

A VELHA TEORIA POR TRÁS DA RECENTE VISÃO COSMOPOLITA

Pode-se dizer que a ideia cosmopolita de Doria acaba sendo uma apregoação da teoria das vantagens comparativas de David Ricardo (1772-1823), que fora proposta no século XVIII, período em que o grau tecnológico da produção era ínfimo em comparação a atualidade. Para o professor, Doria acaba por defender ideias muitos semelhantes as do economista Eugênio Gudin (1886-1986), que travou um intenso debate com Roberto Simonsen por volta de metade dos anos 1940, contrariando a proposta deste de planificação e intervenção do Estado mediante políticas protecionistas para incentivar a industrialização, deixando o mercado atuar mais livremente. Contudo, as proposições de Gudin limitariam o desenvolvimento industrial e inclusive reforçariam a sustentação do antigo e ultrapassado modelo agro-exportador.

Portanto, como bem sustenta Roncaglia, “a lógica de Pedro Doria é que o liberalismo ou o globalismo (…) seriam um grande jogo harmônico e todo mundo faz aquilo que faz melhor. Não tem vazão para conquistar as jazidas de petróleo, não tem pressão internacional para que os países não consigam proteger determinadas indústrias, a não ser quando os EUA ou a Europa querem proteger. Aí já é um pouco mais tolerável. Mas quando a China ameaça (..) tem que começar a investir pesado na produção de semicondutores”. Segundo professor, é exatamente o que o plano de Biden está fazendo nos EUA.

Nas palavras do igualmente distinto e exímio professor Nelson Marconi, que também se posicionou sobre o vídeo de Pedro através de um fio no Twitter, o que o jornalista chama de “esquerda cosmopolita”, não passa de um “social liberalismo”. Dentro dessa perspectiva social liberal, o Estado não deve oferecer políticas que incentivem a produção interna, restringindo a apenas praticar políticas sociais. Como bem ressalta o professor, foi justamente o que os EUA, com Obama, e a Europa fizeram, contudo, foram insuficientes para estimularem a retomada econômica.

RESSALVAS DESENVOLVIMENTISTAS DE DEFESA À INDÚSTRIA

Para defender seu ponto de vista e contra argumentação, Roncaglia cita Friedrich List (1789-1846), que no século XIX já desmistificava também essa visão de Ricardo, demonstrando que a Alemanha só conseguiu desenvolver a sua economia graças a medidas protecionistas de sua “indústria infante”. O professor também menciona Raul Prebisch, economista argentino da CEPAL, que em 1949 comprovou que essa especialização de produção naqueles bens mais “competitivos” teria criado um abismo entre países em desenvolvimento (PED) e desenvolvidos (PD). Isso porque os PED se especializavam na produção de bens com menor intensidade tecnológica e de capital que os PD, geralmente agrícolas, com diferenças significativas nos preços dos bens exportados. Estes eram de menos valor agregado que os importados pelos PED dos PD, o que gerava um grave problema de deterioração dos termos de troca.

POLÍTICAS INDUSTRIAIS DOS PAÍSES DESENVOLVIDOS

Um contraponto do professor Marconi é sobre uma espécie de negacionismo por parte dos neoliberais quanto à importância da indústria, uma vez que os países que mais crescem e se desenvolvem são justamente aqueles que incentivam esse setor e também “serviços estratégicos”, expandindo sua participação no mercado internacional, casos da “China e todo leste e sudeste asiático”.

Atualmente, segundo Marconi, os governos dos EUA e Alemanha “estão adotando políticas para revitalizar sua indústria e proteger setores estratégicos”. O professor reconhece a importância da educação, que Doria defende a formação de “cérebros” e “PHD´s”, mas cabe ressaltar que sem ações coordenadas por parte do Estado que aproveitem a formação desse capital humano, como políticas industrializantes, acaba-se criando, nas palavras de Marx, um “exército industrial de reserva” de talentos ociosos e, portanto, subaproveitados. É muito do que o Brasil vem sofrendo desde a recessão de 2015-2016 e as reformas implantadas nos governos Temer e Bolsonaro. O desenvolvimento de cérebros apregoado por Doria é semelhante às políticas educacionais dos governos Lula e Dilma, que conduziram milhares de jovens às universidades, mas que há cinco anos não encontram empregos compatíveis a suas formações (ex: engenheiros motoristas de aplicativo).

Ademais, para Marconi, é fundamental a integração ao mercado internacional, todavia, tanto melhor se for através da exportação de manufaturados, que possuem maior valor agregado, e não apenas vendendo commodities e bens agrícolas. Também é relevante o desenvolvimento industrial e de serviços estratégicos, mediante uma parceria entre os setores público e privado. Não precisamos nos integrar somente vendendo bens agrícolas e comprando manufaturados, comprometendo nossa balança comercial e de pagamentos e provocando a mesma deterioração dos termos de troca que sofremos durante a vigência do modelo agro-exportador.

O SETOR AGROPECUÁRIO E A INDÚSTRIA

Como bem coloca o professor Marconi, à medida que os países se desenvolvem economicamente, modernizando sua estrutura produtiva, há um aumento da participação da indústria e uma queda da agropecuária no PIB. Ainda que o setor primário seja relevante na produção de alimentos e contribua significativamente nas exportações, a indústria remunera melhor, enquanto a agropecuária paga os menores salários e tem uma capacidade limitada de gerar empregos com uma boa renda. Há de se destacar também a inter-relação entre agropecuária e indústria, principalmente nos estágios iniciais de industrialização, em que o primeiro tanto é um importante fornecedor de insumos, quanto também adquire máquinas e equipamentos desse último.

O PROCESSO DE DESINDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA

O próprio Brasil, nos anos 1990, abriu a sua economia desenfreadamente, sem o cuidado de proteger a sua indústria pouco competitiva em termos internacionais, haja vista que seguia outro modelo até então. Dos anos 1930 a 1980, o país implantou um Processo de Substituição de Importações (PSI), cuja ideia era de fomentar o desenvolvimento econômico estimulando a formação de um mercado interno. A abertura comercial, calcada na globalização defendida pelo Consenso de Washington, impactou no desmantelamento de nosso parque fabril, altamente encadeado, e início de nosso processo de desindustrialização em curso até então. O processo de desindustrialização e desnacionalização de nossa produção nos tornou muito mais dependentes de moeda estrangeira, seja para adquirir produtos finais ou intermediários, seja para suprir afluxo de capital para o setor externo, como remessa de lucros de filiais para suas matrizes, captação de empréstimos e financiamentos junto a bancos estrangeiros, etc.

O PAPEL DO CÂMBIO NO NOVO-DESENVOLVIMENTISMO

Outro argumento de Doria rebatido por Roncaglia é que Ciro, sendo um nacionalista, tem como seu principal colaborador econômico, o professor Nelson Marconi, um novo-desenvolvimentista, e que por causa disto, entenderia que o câmbio desvalorizado atualmente se encontra no nível ideal, uma vez que encarece produtos estrangeiros e acaba por fomentar a indústria nacional. Todavia, como bem explica Roncaglia, não é isso o que defendem os novo-desenvolvimentistas. Uma taxa de câmbio estável é para dar capacidade de empresas nacionais possam competir minimamente, respeitando sua fronteira tecnológica, com exportações para outros países.

Como também afirma o professor Marconi, “a taxa de câmbio é uma condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento”. Uma taxa de câmbio valorizada provoca uma redução da produção local em detrimento da entrada maciça de produtos estrangeiros. Ademais, nada impede que o Brasil possa inovar e produzir bens de maior grau tecnológico, seja atraindo empresas estrangeiras ou fomentando empresas nacionais, como feito, por exemplo, nos Tigres Asiáticos. Isso inclusive faz parte do Projeto Nacional defendido por Ciro.

A CONTRACRÍTICA À QUALIDADE DE NOSSA INDÚSTRIA

As críticas quanto à qualidade de nossa indústria desprezam o contexto e propósito do Modelo de Substituição de Importações (MSI) aplicado no país. Tínhamos uma economia agroexportadora especializada na monocultura cafeeira. Sem a substituição desse modelo ultrapassado, estaríamos dependentes de um produto com baixa sensibilidade ao crescimento econômico de outros países, uma vez que incrementos na renda não induzem a um aumento do consumo desse bem. O processo de substituição de importações na América Latina foi implantado voltado ao desenvolvimento do mercado interno (para dentro).

Se o PSI não fora direcionado para exportações ou competição com importados no mercado interno, ao menos permitiu abastecê-lo com a máxima autonomia. Foi justamente essa orientação, com todos os seus defeitos, que nos fez ser um dos países que melhor se saiu na crise dos anos 1930, que mais cresceu no mundo do pós-guerra até o início dos anos 1980 (em média de 7% ao ano aproximadamente) e que reduziu fortemente a nossa dependência com o exterior. Em nenhum momento o mundo era cosmopolita nesse período, pelo contrário, todas as economias eram nacionalistas no período pré-globalização.

O QUE DEFENDE O NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO DO PROJETO DE CIRO GOMES

A defesa de maior integração irrestrita ao mundo já fora feita nos anos 1990, e Pedro Doria esquece a necessidade de fazê-la cuidando para não promover uma recessão e desemprego. O argumento de centralização da produção por nacionalistas, tampouco, está relacionado às ideias do nacional-desenvolvimentismo apregoado por Ciro. Obviamente que será necessário importar bens intermediários para a produção de bens de consumo duráveis. Mas a proposta de Ciro é uma política industrial adaptada ao Século XXI. Além disso, os principais complexos industriais selecionados pelo Projeto Nacional de Ciro (Agronegócio, Petroleiro, Saúde e Defesa) já respeitam a nossa atual competitividade.

Como bem explica o professor Marconi, a estratégia novo-desenvolvimentista “busca a integração comercial defendendo e estimulando nossos produtos, cobrando resultados, e desenhando políticas e ações com o setor privado”. Doria se refere é ao velho desenvolvimentismo, praticado desde os anos 1930 até meados dos anos 1980, muito diferente do que apregoam os novo-desenvolvimentistas. O canal Politizando, corretamente, remete ao livro de Ciro, quando este critica algumas estratégias usadas naquele período, como endividamento externo, a falta de políticas educacionais e a concentração regional da indústria. O Projeto de Ciro evita e ataca exatamente esses pontos.

A ADEQUAÇÃO À ATUALIDADE DO PROJETO NACIONAL DE CIRO

Portanto, é preciso esclarecer que o Projeto Nacional de Ciro não se resume à aplicação do mesmo modelo de desenvolvimento praticado nos anos 1930 a 1980, mas a uma estratégia novo-desenvolvimentista, conforme descrita acima por Marconi. Ciro considera que existem fatores como escala, diferença tecnológica e custo do capital que alteram fortemente as condições de competitividade dos países. Por esse motivo, conforme o próprio autor explica, “essas mudanças econômicas mundiais também mostram por que não podemos optar simplesmente por uma volta ao nosso velho modelo nacional-desenvolvimentista baseado em empréstimos internacionais, protecionismo generalizado e dependência da inteligência tecnológica alheia”.

Considerando os cinco principais pilares do projeto de Ciro: i) Recuperação do Estado; ii) Reforma tributária; iii) Reindustrialização; iv) Revolução educacional e v) Agregação de valor ao produto rural, pode-se afirmar que difere consubstancialmente dos planos e projetos implantados durante o Processo de Substituição de Importações (PSI). As medidas voltadas para sanear as contas públicas e reformas estruturais só constaram no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), implementado no período 1964-1967, mas que era focado mais no combate à inflação e equilíbrio das contas públicas. Já as propostas de políticas agrícola, industrial e educacional até estiveram presentes no Plano de Metas (1956-1961) e no II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND (1974-1979). Contudo, o Projeto Nacional de Ciro é mais atrelado ao desenvolvimento tecnológico e à economia do conhecimento, bem como ao contexto mundial da atualidade, conforme a citação acima.

Por conseguinte, levando em conta o recente cenário catastrófico em âmbitos político, econômico, social e ambiental, a candidatura de Ciro Gomes se justifica por ser a única sustentada em um Projeto Nacional de Desenvolvimento que dialoga com as necessidades atuais do país. Desse modo, propostas cosmopolitas que induzem à defesa de políticas neoliberais anti-industriais, caso venham a serem aplicadas por quem vir a suceder o atual desgoverno de Bolsonaro, só agravarão esse contexto recessivo e de atraso que recrudesce ainda mais o nosso subdesenvolvimento. Por isso, o Projeto Nacional de Ciro é o que melhor oferece uma oportunidade para o país sair dessa condição deplorável em que se encontra, e proporcionar maior bem-estar, devolvendo dignidade, a nossa população, sobretudo a mais carente.