No último domingo (6), Ciro Gomes deu uma de suas melhores entrevistas. Uma verdadeira aula de Brasil. A conversa, que durou mais de duas horas, pode ser resumida em aproximadamente 35 páginas de conversas inspiradoras sobre os entraves e caminhos para o país que sonhamos.
Em homenagem a essa entrevista, estamos dando continuidade a uma série de publicações destacando cada uma das participações de Ciro no Conexão Xangai, programa apresentado por André Roncaglia, Paulo Gala, Elias Jabbour e Uallace Moreira. Esta publicação é a parte 5 deste documento.
[PARTE 5] MEIO AMBIENTE, AMAZÔNIA E PROJETO NACIONAL
ANDRÉ RONCAGLIA:
Eu nunca esqueço quando você perguntou se dava bilhão. Aquela ideia que já virou um meme histórico, quase secular. Eu quero fazer isso com você agora, usando as suas próprias palavras. Eu senti um pouco falta de duas lentes importantes, que eu acho que o mundo, a pandemia acabou revelando a premência imediata disso.
Primeiro, a questão ambiental. Você fala no livro que o desenvolvimento industrial vai estressar o meio ambiente, isso é verdade. Mas a pandemia mostrou pra gente a conexão entre as crises sanitárias a crise ambiental, né? Então, a gente tem mudanças climáticas do plano coletivo do Globo e a tendência é a gente passar por crises cada vez mais frequentes, inclusive, no plano da saúde.
CIRO GOMES:
Veja, o Brasil tem uma oportunidade em cima da questão da sustentabilidade dos nossos modos de produção e vivência. Eu acho que nós temos que dar conteúdo prático a esse “truísmo” que é o desenvolvimento sustentável, né? Então, todos nós somos obrigados, e é bom que sejamos mesmo, a ter atitude politicamente correta, de que o desenvolvimento há de ser sustentado. O problema é dizer o que diabo é isso, aqui e agora no território.
E se a gente quiser ver, a caricatura sofrida disso é a Amazônia. Então, a Amazônia, basicamente, Roncaglia, não faz nem sequer trinta anos, que o governo brasileiro chamou a população brasileira da metade sul do Rio Grande do Sul à Amazônia. Nós dissemos assim: venham pra Amazônia. Integrar para não entregar. Sabe qual é a condição sine qua para cidadão chamado pra Amazônia? Para titular a terra pelo Incra era necessário demonstrar, com prova testemunhal em cartório, que tinha desmatado. Então, quer ter o título da terra? Prova que desmatou, derrubou pelo menos 50% do lote, aí você vai receber o papel.
Uma geração depois, isso virou crime de lesa-pátria, sem conversar com eles, virou crime na conexão Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro. E aí, esse povo lá não entende. Eu conheço a Amazônia como a palma da minha mão. Visito todo mundo, conheço dezoito dos vinte e dois municípios do Acre. Com paixão mesmo, né? Fui visitar o Ticunas lá no Alto Solimões, criei uma rádio pra ter lá em Tabatinga. Uma rádio que fala português, porque Tabatinga do outro lado da rua é Letícia, uma capital de província da Colômbia e a rádio que eles ouvem é em espanhol. Lá não tinha quem a tomasse conta da rádio, entreguei pro bispo da região para tomar conta. Eu conheço esse meu país com a minha alma e com o meu amor.
Eles não entendem essa coisa de preservação. Eles olham aquela exuberância, uma árvore de mogno morta, por exemplo, as árvores morrem. Ela vale quinze mil reais, trinta mil reais. Que é dinheiro para o cara viver quase metade do ano com a família dele. E não consegue licenciar pra tirar. Evidente que isso é um assunto popular. Já as elites estão fazendo caso pensado, uma lógica. Que também é uma lógica de quem não tem alternativa. Qual é a lógica? Pega aquele negócio inútil [a floresta], do ponto de vista deles, passa a corrente e derruba tudo e entra com o gado. E, depois do gado, vai tentar alguma cultura tal como a soja.
Então, a primeira grande questão, pra gente, e isso vale pra todos os biomas brasileiros. O mais estressado, perto de morrer, é a Mata Atlântica. O nosso Pantanal perdeu 30% agora em incêndio e a caatinga do Nordeste, que é um bioma extremamente delicado, também está sob gravíssimo estresse. Uma série de dificuldades, por quê? Porque nós não damos ao nosso povo alternativas concretas para sobrevivência . E, mais do que sobrevivência, para a expectativa de enriquecer, manejando aquela coisa de forma sustentável.
Quantas estruturas têm de capacitação? Que mecanismos temos de financiamento para atividades sustentáveis dentro da Amazônia? Quem é que sabe fazer uma nova cosmética assentada na biotecnologia, numa cosmética natural e que tem espaço no mundo? Como é que vamos vencer o problema de escala? Como é que um pequeno vai acessar comércio exterior? Isso quem vai fazer é o mercado? É Governo.
Agora vamos lá, regulação, unidade de conservação. Sabe qual é a capacidade do Brasil real de enforcement no território amazônico? Nenhuma. O efetivo do ICMBio é ridículo, o efetivo do IBAMA é ridículo, fica tudo ali por perto dos lugares que são razoáveis de se viver, como é natural. São funcionários públicos, classe média, querem botar o filho numa escola que preste. E a unidade de conservação tá lá na caixa prego e o cara chega lá e faz o que bem entender. E aí acusa índio de ser preguiçoso, porque não compreende que a cultura do índio é de não acumular.
Diferente do capitalismo, judaico-cristã que nos aculturou, o índio não tem nenhuma necessidade de acumular, ele não pensa nisso, ele não tem essa lógica e eles [os brancos] “transformam” isso em preguiça, depois contaminam com suborno, cachaça e não sei o que, e gera um desprezo. Olha, é uma terra sem dono. Para qualquer brasileiro é uma terra sem dono. Vamos pra lá conversar com o nosso povo, que eles tão votando em massa, no Bolsonaro. Tão votando em massa no Bolsonaro ainda hoje, por quê? Porque o Bolsonaro botou um Ministro que tá ajudando contrabandista, porque o Bolsonaro botou um ministro que tá fazendo passar a boiada e isso se conecta com a vida do povo. Ser de esquerda não é ser déspota esclarecido, não. Ser de esquerda, é se contaminar com a vida do povo. E aí, o céu é o limite, meu irmão.
A primeira grande providência de um governo como o meu vai ser o zoneamento econômico ecológico. Nós vamos nos assenhorear do território. Vai ser dito o seguinte, olha, no Pará, já tá quase 70% desmatado. Qual é a tarefa? Desestressar a fronteira que tá indo pra “frente”, com práticas “para trás”. E aí, a indústria cumpre, nesse caso, um papel relevante.
Aí, o ambientalismo mais radical, por quem eu tenho afeto, admiração e respeito, afinal de contas, tá lutando pra proteger a vida do meu filho. Mas eu sou candidato a Presidente do Brasil agora. Então, o ambientalismo tradicional rejeita a ideia de reflorestamento com essências que são mais rentáveis economicamente, condena a monocultura… E tudo isso tem procedência, tudo isso tem virtude, por favor, não me ponham no outro lado. Mas nós precisamos desestressar para trás o pulso de desmonte da floresta para frente. Isso só se faz com a atividade econômica. Então tem lá no Pará, você planta uma madeira que chama Taco, que não é brasileira, vale mais do que mogno. Por que que a gente não pode, no zoneamento econômico ecológico (seja na recuperação de pastagem, na recuperação de solo degradado), ir introduzindo fórmulas que tenham essa dialética de evoluir com a geração atual, do que eles sabem fazer. Para dar à nova geração, um novo saber, biotecnológico, uma nova farmácia, uma nova química, sabe? Uma biomassa para energia, uma cosmética que tem a ver com a bioquímica. A floresta vale muito mais em pé. O saber tradicional está virando patente que o Brasil paga a royalties. O Yanomami sabe que sabe que o xixi de uma determinada aranha cura a dor de dente.
ANDRÉ RONCAGLIA:
Eu e o Paulo Gala escrevemos o livro “Brasil, Uma Economia Que Não Aprende”, e uma das coisas que a gente vem falando é que a Amazônia é uma biblioteca natural. A gente precisa aprender a extrair. E são exatamente os residentes dela que conhecem. E a gente tá derrubando a biblioteca, né?
CIRO GOMES:
Tem lá um enorme prédio, gigantesco prédio que foi criado para ser (no governo Fernando Henrique), o Instituto Nacional de Biotecnologia. E a metodologia de abordagem dessas transições, tá no Emílio Goeldi, tá no INPA. Mas nós temos que evoluir dialeticamente com o nosso povo.
Eu ia dar um exemplo, a Finlândia, terra do Papai Noel, fica bem vizinho ao círculo polar Ártico. Tem oito por cento do mercado de celulose do mundo. E tem menos terra útil do que o Piauí. E o Brasil tem menos de 1% do mercado de celulose do mundo.
Agora, para fazer isso, é preciso que a gente faça o zoneamento econômico ecológico, dizer aqui pode, aqui não pode. E a lei tem que valer. Se eu dou alternativas, se eu crio caminhos alternativos, de massa, para a população trabalhar, produzir e criar os filhos com deficiência, posso fazer o que eu tenho que fazer, meter na cadeia [os criminosos ambientais], sabe? Meter na cadeia de forma severa, sem regressão de pena, sem nada para, de fato, mostrar para nós e para o mundo que somos senhores e capazes de administrar esse tesouro extraordinário. Isto vale para todos os grandes biomas, mas a Amazônia, como é a mais conhecida internacionalmente, é por onde temos que começar.
Você sabia que na segunda década do século XXI, o Brasil não tem um zoneamento econômico ecológico? Eu ainda fiz um primeiro movimento [como ministro da Integração Nacional] com o governador do Pará e caiu lá no vazio, porque eu saí, acabou-se. Porque não tem Estado. As Forças Armadas estão na faixa de fronteira, a meio turno. Eu já dormi no quartel lá em Tabatinga, com esse bosta desse general Heleno, né? Ele era o comandante de lá. Dormi lá no quartel. Já levei X-burguer para oficial da aeronáutica, lá na base, né? No Morro da Cabeça do Cachorro. Eu conheço essa gente.
Agora, cadê o Brasil? Cadê o Brasil? Quem é o Brasil pra esse nosso povo? Roraima importa energia da Venezuela, cavalheiros. Século XXI, segunda década. Aí vamos fazer a proteção dos cinta larga. Aí o cinta larga descobre uma ocorrência mineral em Rondônia, que eu fui lá também visitar. Aí o cinta larga descobre uma ocorrência mineral de diamante. Aí não pode! Não pode minerar na terra indígena. A lei brasileira não permite minerar na terra indigna. Tu acha mesmo? Que alguém vai conseguir impedir que um cinta larga paupérrimo, tendo contrabandista ao lado, pagando milhões de reais por quilômetro diamante, isso não vai acontecer?
Então o Ciro Gomes é anti-ambientalista? Não, eu sou ambientalista de origem, ambientalista raiz, mas a gente precisa se assenhorear na vida real do povo brasileiro. Um Cinta Larga, sabe o que aconteceu? Um monte de gente chegou lá, ouviu falar de ocorrência mineral, eles mataram uns quatro e foi por isso fui pra lá. Mataram uns quatro, passaram na faca, porque chegaram lá os contrabandistas e tal. É isso. Aí, agora tão invadindo o Yanomamis porque tem uma ocorrência de ouro. Se você não tiver um Estado, presença ali, você simplesmente vai chegar depois. Aí a irmã Dorothy vai reclamar e vão matá-la. E ela e o Chico Mendes, todos os que se antepuseram, se nós não nos assenhorearmos do território. E não é com elitismo, nem com déspota esclarecido.
Nós temos que evoluir com o nosso povo. Não tem cadeia pra todos eles. Não tem cadeia pra todos, não tem polícia pra pegar a quantidade de pessoas. Você precisa ver o que os políticos, na reunião sem imprensa, falam. Você chega em Roraima, eles pegam um mapa e aí não interessa o partido. Pega o mapa, aí bota uma transparência com o mapa das ocorrências minerais sensíveis, ali em cima do mapa de Roraima. Aí bota em seguida um mapa com as unidades de conservação, reservas indígenas, sobra oito por cento do território para Roraima. E a Geodésica que limita a unidade de conservação, não sei se é de propósito, coincide exatamente com a ocorrência mineral sensível que está sendo contrabandeada. Essa é a vida do Brasil. Isso, 20, 30 anos depois que o pensamento progressista empolgou o poder, seis eleições depois. Aí não entende porque deu no Bolsonaro … ninguém aguenta mais conversa mole.