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Ciro no Conexão Xangai (3): tecnologia, complexos industriais e PND

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No último domingo (6), Ciro Gomes deu uma de suas melhores entrevistas. Uma verdadeira aula de Brasil. A conversa, que durou mais de duas horas, pode ser resumida em aproximadamente 35 páginas de conversas inspiradoras sobre os entraves e caminhos para o país que sonhamos.
Em homenagem a essa entrevista, estamos dando continuidade a uma série de publicações destacando cada uma das participações de Ciro no Conexão Xangai, programa apresentado por André Roncaglia, Paulo Gala, Elias Jabbour e Uallace Moreira. Esta publicação é a parte 3 deste documento.

[Parte 3] TECNOLOGIA, COMPLEXOS INDUSTRIAIS E PROJETO NACIONAL

UALLACE MOREIRA:
Eu acho que você trazer o conceito de Projeto Nacional de Desenvolvimento para o debate é muito importante. A gente ficou muito à margem dessa discussão. Que, hoje, mais do que nunca se faz necessária. Sou da ideia de um projeto nacional de desenvolvimento. E veja, as instituições multilaterais internacionais, inclusive o FMI publicou um relatório sobre isso, reconhecem o declínio das ideias neoliberais.
A necessidade de fortalecer cadeias produtivas internas como, por exemplo, como você sempre cita, o complexo econômico industrial da saúde. Nós temos um potencial construído, que está sendo destruído por falta de investimento, mas não só ele. Em 2008, nós criamos uma estatal, que fabrica semicondutores, a única da América Latina, que é a CEITEC. Nós sabemos, enquanto estudiosos do tema, que existem barreiras na entrada, que existe o mercado estabelecido na economia mundial de produtores de semicondutores (China, Taiwan, etc.). A CEITEC vai enfrentar dificuldades na construção dessa curva de aprendizagem.
Então [precisamos] rever o modelo. Ampliar a política de estímulo é uma coisa. Por exemplo, nós temos o PADIS, que é um programa de estímulo aos semicondutores que está sendo destruído. E nós estamos vendo o fechamento da CEITEC. Você foi uma das pessoas que levantou a bandeira de fazer a crítica, de defender a CEITEC. Quando a CEITEC foi construída, tinha uma aliança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da PUC do Rio Grande do Sul, junto com o Governo do Estado, à formação de mão de obra qualificada. São mais de cem pesquisadores. Tanto a Carlota Perez, como a Mariana Mazzucato, tuitaram essa semana, apoiando e defendendo a CEITEC.
Então, eu queria que você abordasse um pouco essa temática. É uma janela de oportunidade. E veja que o governo Bolsonaro, junto com o Paulo Guedes, estão destruindo essas capacidades. Por exemplo, a política de compra pública. Os caras abriram para um mercado estrangeiro, para as empresas internacionais, são 130 empresas estrangeiras, a maioria, da Alemanha e norte-americanas, se beneficiando dessas compras públicas.
E eu queria que você abordasse essa questão e a importância de defender a CEITEC. Você retomaria a CEITEC?
CIRO GOMES:
Sem nenhuma dúvida. Eu tenho feito provocações respeitosas ao Lula, de que ele sendo o primeiro colocado na pesquisa e eu sendo o terceiro, se a gente fizer um fogo de barreira, a gente pode ajudar o Brasil hoje. Antes mesmo de encerrar a tragédia do Bolsonaro. Portanto, vamos lá, questões práticas. A CEITEC é uma semente que tem que ser multiplicada em várias outras sementes similares. Qual é a dificuldade desses imbecis? Ora, a dificuldade básica é que há três assimetrias mortais individualmente. E, juntas, são absolutamente mortais para um país com as necessidades do Brasil.
A primeira assimetria é a personalidade e o custo do capital. Então, eu não posso estabelecer que a minha eficiência, a minha produtividade, seja rebatida com benchmarking sem dar um rebate deste ponto essencial, que é a personalidade e o custo do capital no ponto de partida. Essa é uma simetria.
A segunda assimetria tem a ver com escala. A escala significa a redução do preço, do bem ou serviço, à fração do custo de produzir ou de prestar o mesmo serviço, ou bem em pequena escala. E a escala de uma economia é dada pelo ponto de partida do mercado interno e do perfil de distribuição de renda deste. Eu não posso exigir eficiência de um camarada que tem pequena escala fazendo competir com o de larga escala. Eu brinco sempre que uma calça chinesa vinda de Shanghai, produzida com um bilhão de unidades, chega mais barato na Sulanca de Caruaru, onde toda essa agenda Paulo Guedes, já está praticada. A gestante trabalhando catorze horas por dia, criança trabalhando fora da escola, não tem imposto, não tem encargo previdenciário, não tem carteira assinada, não tem sede, não tem nada. Zero. E a calça chega mais barata, por quê? Porque o ganho de escala é tão grande, que basta o chinês ganhar [uma fração de cada calça], ainda mais arbitrando câmbio, que é um assunto central.
E a terceira está no nível de maturidade tecnológica. Esse é um drama que a “nova esquerda” tem que parar pra pensar. E eu tenho refletido isso com intelectuais chineses, que estão militando numa nova esquerda chinesa. Que é basicamente o seguinte, nós temos que começar a construir uma luta por uma nova institucionalidade que capture esses ganhos extraordinários de produtividade para o ócio. Ou então para a população trabalhadora diretamente via uma tributação, diferente daquela que temos hoje.
Nós temos uma inteligência brasileira, por mais que ela tenha sido surrada, tenha sido mandada embora… Nós temos muita gente. Eu circulo nesse meio, porque é aí que eu encontro segurança nas ideias que eu tenho procurado sustentar na defesa do Brasil. Quem puder, dá um pulinho em Campinas. Passa ali no Projeto Sírio, né? A COPPE no Rio de Janeiro, o COMPERJ, uma série de coisas que o Brasil é capaz de produzir. E aí, nós vamos ter que fazer um plano mesmo, porque o projeto é um plano.
Há uma nova divisão internacional do trabalho. E é claro que nossa ilusão nacional desenvolvimentista dos anos 30, 40, 50, não pode ser copiada com casca de tudo, por quê? Porque especialmente neste componente tecnológico, era razoável o Brasil sair atrasado e copiar numa substituição de importações. Hoje isso não é mais praticável, a divisão internacional do trabalho ficou muito mais agressiva e muito mais dramática. Eu tenho citado exemplos para ver se a população compreende com a simplicidade necessária. Por exemplo, o Brasil está gastando, de compra federal, oitenta bilhões de reais no complexo industrial da saúde. E tem intelectual preparado, em tese de doutorado, PHD na Fiocruz, o Carlos Gadelha. Ele levantou setor a setor, onde a patente está vencida.
Compra governamental não é nenhuma distorção. Está autorizada pelo nosso status de país em desenvolvimento da OMC, (que o Bolsonaro se comprometeu com o Trump de tirar,em nome de presença na OCDE). Veja, nenhum lugar do mundo abriu mão dessa ferramenta [de compra governamental]. A China não abre mão dessa ferramenta e é o centro da disputa com os Estados Unidos. A China fazendo câmbio é o oposto do que o Brasil faz há 40 anos. Enquanto o Brasil faz câmbio para estimular o consumismo, a China está fazendo câmbio para estimular parcimônia, investimento, competitividade no mercado externo.
Pois bem, você tem o complexo industrial do petróleo, gás e bioenergia. Ninguém acreditava que o Brasil tinha petróleo. Em 1932 comerciantes do interior do Rio Grande do Sul, fizeram a nossa primeira refinaria trazendo barril de petróleo de navio. Quando o Getúlio decidiu criar a Petrobras, o relatório americano dizia que não tinha petróleo no Brasil. Nós fomos descobrir petróleo no pré-sal. Isso é um negócio absolutamente extraordinário, que a engenharia brasileira produziu quando teve coerência, oportunidade reinitência na pesquisa e foi muito rápido. O biocombustível pode rivalizar com a tendência do carro elétrico. Se a gente começar a ganhar escala, estabelecer o zoneamento econômico ecológico… É uma série de coisas que só o planejamento permite resolver com inteligência, sem preconceito, sem interdição.
E depois o complexo industrial militar. Complexo industrial militar, a gente gasta bilhões. E é uma coisa patética, as comunicações militares brasileiras são norte-americanas, a orientação dos nossos barcos, é GPS americano. Se é assim, pra que ter Forças Armadas? Eu sustento que nós temos que ter Forças Armadas, mas não é assim. Trezentos mil homens com garrucha pra atirar de baladeira, de estilingue? Se for assim vamos parar de fazer merda, tomar cerveja e comer picanha, não é? Passar esbórnia na cara do povo brasileiro. Esse general, boçal, matar um monte de gente no Ministério da Saúde e agora não ser sequer punido? É outro país que eu pretendo governar. E é com parcimônia e seriedade.
Mas a questão tecnológica é o outro nome de soberania, Uallace. O que for destruído eu reponho. Novos materiais, semicondutores, nanotecnologia. Essas fronteiras aí, 100% dos casos, o Estado está atrás. É a própria ideia de uma nação soberana.
UALLACE MOREIRA:
Só pra dar o dado, Ciro, só na Ásia o nível de subsídio chega a 40%.
CIRO GOMES:
Isso é subsídio aberto. Agora, bote a compra governamental. Isso é quase tudo, é quase tudo. E, assim, nós não temos que ter medo disso, nós temos que botar isso em cima da mesa e dizer com clareza. É ridículo um país ficar processando suas comunicações militares no satélite estrangeiro. O Brasil entrega a base de alcântara para os americanos e vai pagar agora a projeção de satélite na Rússia, na Ucrânia?
ANDRÉ RONCAGLIA:
Ciro, eu só queria colocar um ponto, inclusive, para reforçar a comunicação desse aspecto. Toda vez que a gente fala da CEITEC, as pessoas perguntam: mas dá lucro? Você citou quatro grandes setores, que todos eles são melhorados, aprimorados, por semicondutores, por toda tecnologia que está por trás. E as pessoas não têm muitas vezes entendimento de que o investimento estratégico não necessariamente dá lucro, mas ele dá lucro indireto para nação como um todo.
Se a gente volta ao século XIX, o pessoal chamava de dividendo nacional, que era uma forma de você enriquecer o país, muito embora isso não apareça direta e exclusivamente nos balanços das empresas que produzem esses bens. Então, eu queria reforçar esse ponto, porque isso é muito importante no debate, né?
CIRO GOMES:
É importante que se diga isso ao nosso povo, mas só pra também não deixar eles com esse argumento, é só lembrar que a Eletrobras dá um lucro exorbitante. E o governo está correndo aí sem ponderar no valor da capitalização criminosa, a transferência do controle. A BR Distribuidora era uma joia no grande negócio integrado da Petrobras. Era o melhor negócio, que nunca deu prejuízo. Primeira providência dos privatizantes, sabe o que que fizeram? Aumentaram em quatorze vezes o salário dos executivos na BR Distribuidora e expandiram seu endividamento de uma forma explosiva. Isso tudo é picaretagem.
PAULO GALA:
Ciro, só para reforçar seu ponto, o Trump percebeu que as comunicações americanas iam caminhar para tecnologia de 5G que é dominada por equipamentos telecom dos chineses. Foi isso que deixou o Trump revoltado em relação ao equipamento telecom 5G. Ele viu que iria acontecer o que acontece no Brasil, por exemplo.
CIRO GOMES:
Só para reforçar pela perspectiva da tragédia da pandemia e estabelecer um elemento pedagógico amargo, mas muito importante sob ponto de vista do povo entender, o Brasil está no fim da fila, porque não sabe mais fazer vacina. Temos que importar máscara da China, importar monitor de UTI, importar respiradores da China. Nós no Ceará tivemos que “contrabandear”, via aérea pela Etiópia, porque os americanos estavam pegando aviões que fizessem escala lá e estava sequestrando os respiradores. Há 120 anos o Instituto Butantã sabe fazer vacina.
Essa gente nunca botou nada no lugar e é só destruindo, só entregando, só botando o país para trás. Na ilusão de que nós vamos pagar o módulo moderno de vida ao qual o nosso povo aspira acessar. O menino da favela quer ter um celular, quer ter um tablet, quer ter o tênis Nike, que é bonitão, que não dá dor no joelho, mas ele não tem renda pra isso. E nós vamos iludir a nossa nação, de duzentos e dez milhões de bocas, que vamos pagar esse modo moderno que nós temos direito de aspirar, trazendo tudo do estrangeiro e pagando com soja, milho, minério de ferro in natura e petróleo bruto? Essa conta não fecha.