Alimentando o temor de um golpe por Bolsonaro, lulopetistas vêm apregoando uma decisão precoce de “voto útil” para convencer os eleitores de Ciro Gomes a transferirem seu apoio a Lula para este vencer as eleições já no primeiro turno. Essa tese não passa de um terrorismo eleitoral para garantir a vitória de Lula.
“Voto útil”: a tese do criador
Recentemente, estamos assistindo a um acirramento da competição entre os candidatos à presidência nas eleições deste ano. Os ânimos estão exaltados. Há cada vez menos espaço para debates racionais e civilizados sobre temas relevantes ao país, como economia, saúde, educação etc. Concentra-se basicamente em quem deve manter a sua candidatura, mostrando viabilidade eleitoral e, principalmente, quem tem mais chances de derrotar o atual presidente e proteger a nossa democracia de um golpe.
Aparentemente, as falas de Bolsonaro apontam supostas falhas no funcionamento das urnas eletrônicas, com as forças armadas sendo cooptadas para questionar o TSE, cujas respostas causaram enorme constrangimento ao demonstrarem a repleta falta de capacitação técnica dos militares em aplicar até mesmo os mais básicos conceitos estatísticos. Os discursos de que pode não vir a aceitar o resultado eleitoral alimentam o imaginário de uma tentativa de repetição de invasão como a do Capitólio nos EUA, causada pelos mais extremistas seguidores de Trump. De fato, é uma possibilidade que não deve ser totalmente descartada de ocorrer algo semelhante aqui no Brasil.
Todavia, vem surgindo um grande paradoxo com a tese de que para defender a democracia brasileira, é preciso reduzir o número de pré-candidaturas concorrendo à presidência, apoiando aquele que desponta nas pesquisas e que supostamente tem maior viabilidade de vencer o atual mandatário. E que isso faria inclusive que esse candidato vencesse em primeiro turno, feito jamais obtido por ele, nem pelos demais representantes do seu partido, desde o retorno das eleições diretas em 1989.
O que sustenta essa tese do “voto útil”, em princípio, é o temor da reeleição do atual presidente, visando minimizar ao máximo esse risco já no primeiro turno e, consequentemente, que este institua um regime autoritário, como Hugo Chávez fez na Venezuela. Contudo, não deixa de ser paradoxal que, para os defensores dessa estratégia, a melhor alternativa de liderança de uma frente ampla para enfrentar Bolsonaro seja justamente o seu principal antagonista, Lula. É paradoxal porque enquanto estiveram no poder, criaram justamente as condições para que Bolsonaro se elegesse. O lulopetismo subestima e ignora o antipetismo, cujo sentimento extrapola inclusive aqueles que se situam à direita. Segundo as últimas pesquisas do Instituto Quaest, se 80% dos eleitores de Ciro rejeitam Bolsonaro (8 a cada 10 eleitores), a parcela dos que rejeitam Lula (56%) é mais da metade (quase 6 a cada 10 eleitores).
Querem convencer que devemos ser salvos pelo “herói” responsável pela tragédia. Interessante observar que, em nenhum momento, a imposição da retirada da candidatura de Ciro Gomes em apoio à Lula passa pela discussão de quem apresenta maior governabilidade e melhores propostas a serem implantadas. É como se as eleições fossem um fim em si mesmo, e não um meio para que o Brasil conserte o rumo caótico e ineficiente que seguiu a partir da assunção do atual presidente.
Quem tem medo de Projeto?
Isso fica evidente quando se analisa os argumentos pouco embasados e emocionalmente apelativos para que Ciro Gomes abdique de seu Projeto Nacional de Desenvolvimento (PND) para o Brasil, consolidado em um livro publicado em 2020 e que vem sendo aprimorado nesses dois últimos anos. Tudo isso em nome de se associar a um projeto de poder de Lula e do PT, que vêm firmando novamente alianças fisiológicas com os mesmos membros do MDB envolvidos em esquemas de corrupção, inclusive aqueles que aprovaram o impeachment da presidente Dilma em 2016.
Dentre todas as argumentações utilizadas pelos seguidores de Lula, uma causou bastante consternação, a do cientista político e historiador Christian Lynch. No seu perfil no twitter, Lynch critica os “ciristas” por apoiarem o candidato que apresenta o melhor projeto. Sustenta ainda que plano remete aos tempos da URSS, o que segundo ele “pressupõe uma perspectiva progressiva de história e de controle das variáveis socioeconômicas que entrou em colapso na década de 1980”. Completa afirmando que:
“Não estamos em um mundo histórico em que a eleição deve ser definida pelo melhor (sic) “planos”, como se estivéssemos na eleição de 1955. O fetiche, que pretende transmitir superioridade intelectual, desvela mais anacronismo e alienação. O plano que interessa hoje é salvar a democracia”.
Não basta trocar o comando do país, é preciso mudar o modelo econômico e de governança
Primeiramente, o cientista político parece desconhecer a distinção entre o antigo desenvolvimentismo, que existiu até os anos 1980, e o novo desenvolvimentismo apreagoado por Luis Carlos Bresser-Pereira, Nelson Marconi e José Luís Oreiro. O novo desenvolvimentismo, no qual se baseou o PND de Ciro Gomes, é definido por Oreiro da seguinte forma:
“O novo desenvolvimentismo é uma estratégia nacional de desenvolvimento, que tem como eixo central a ideia de que o desenvolvimento econômico é um processo de mudança estrutural da economia realizado com o intermédio da acumulação de capital e do progresso tecnológico.
Para que essa mudança aconteça, é necessário que haja uma taxa de câmbio competitiva, que os salários cresçam no mesmo ritmo da produtividade do trabalho e que haja uma taxa de juros compatível com os níveis internacionais. Com um equilíbrio entre esses três fatores, pode haver uma mudança estrutural da economia, com a realocação dos fatores de produção para setores com maior produtividade do trabalho, como a indústria”.
Por essa definição, percebem-se claramente as diferenças com relação ao antigo desenvolvimentismo que vigorou na América Latina dos anos 1930 a 1980, e o que propõem os preconizadores do novo desenvolvimentismo. No antigo desenvolvimentismo, não havia a preocupação com os instrumentos de políticas econômicas como o câmbio e a taxa de juros, ou de manter os salários compatíveis com a evolução da produtividade do trabalho. As distinções entre os dois modelos são bem demonstradas por Bresser-Pereira (2010)*.
Logo, o novo desenvolvimentismo está calcado no crescimento via exportações, sobretudo de bens industrializados e com maior nível de complexidade econômica, o Estado como indutor de investimentos do setor privado, o controle das contas públicas e da inflação, dentre outras diretrizes que não faziam parte do modelo implantado tanto na URSS como no Brasil dos anos 1950, como argumenta equivocadamente o cientista político.
Lynch, desse modo, subestima a importância de que tenhamos um conjunto de medidas definidas que corrijam os problemas atuais, econômicos, sociais etc. É disso de que se trata. Não basta trocar o comando do país, é preciso mudar o modelo econômico e de governança, pois, do contrário, outra crise política e econômica, ou até golpe poderá se desencadear. Existe um eleitorado que não é desprezível que vota em Ciro e nos outros candidatos e que querem que os problemas atuais (desemprego, baixa renda, inflação, miséria etc.) sejam resolvidos. Não será sem um plano que isso ocorrerá. Como bem arguiu Fausto Oliveira no seu Twitter: “quem quer de fato salvar (ou construir?) de fato a democracia brasileira tem mais é que DEBATER PROJETOS DE PAÍS O TEMPO INTEIRO E HEGEMONIZAR AS ELEIÇÕES NESTE EIXO”.
Portanto, a defesa da democracia passa justamente por termos mais alternativas, além de Lula, que concorram com Bolsonaro. Termos políticos mais capazes, com ideias, experiências de gestão, e que sejam dissociados de ligações com o atual presidente. Nesse particular, não há nome melhor do que o de Ciro Gomes.
Ciro Gomes é o maior medo dos lulopetistas
Restringir nossas opções no primeiro turno só agravará o risco de colapso de nossa democracia. A tese de que é preciso derrotar Bolsonaro já no primeiro turno é falaciosa e irracional. Se Lula ganhasse no primeiro turno, por que Bolsonaro aceitaria melhor o resultado do que se perdesse no segundo turno? O que o impediria da tentativa de se insurgir através de um golpe, independente do turno em que fosse decretada a sua derrocada? É exatamente o contrário. Aí sim que Bolsonaro alimentaria ainda mais a falácia de que as urnas não são confiáveis. A reação de seus fiéis mais fervorosos e violentos só anteciparia um conflito armado ou outra tragédia.
A verdade é que o medo não é de Bolsonaro ir ao segundo turno. É o oposto. O maior medo é de Bolsonaro não chegar ao segundo turno e Lula ter que enfrentar outro adversário. Ciro Gomes é o maior medo dos lulopetistas. Porque Ciro não representa uma ameaça à democracia, não possui uma gestão desastrosa que causou a morte de mais de 600 mil brasileiros, o desemprego de mais de 11 milhões e o empobrecimento de mais de metade da população. Ciro não possui telhado de vidro como Bolsonaro e Lula.
Num segundo turno contra Lula, Ciro teria credibilidade e legitimidade de acusá-lo de ter se corrompido, de sua responsabilidade pela crise política e econômica no governo Dilma, de colocar um líder da ala corrupta do PMDB na linha de sucessão que culminou no impeachment da presidente e que assumiu impondo medidas impopulares que vêm freando a retomada econômica e a melhoria das condições socioeconômicas da população mais carente. Por isso que o PT alimenta a candidatura de Bolsonaro. A frase de Lula sobre o aborto é uma demonstração disso. Se quisesse de fato derrotar Bolsonaro no primeiro turno, Lula não teria dito aquilo e outras asneiras. É como Ciro Gomes resumiu em outro tweet:
“Está em curso uma operação midiática, de puro terrorismo eleitoral, com falsos argumentos técnicos e políticos para uma fantasiosa hipótese de vitória de Lula no 1º turno. Nunca venceu, não venceria, nem vencerá”.
É por causa disso que a estratégia lulopetista é de minar a candidatura de Ciro Gomes. Para fazer valer a tese do “voto útil”, é preciso reforçar o sentimento de medo nas pessoas, de fazer acreditar no diversionismo e “cortinas de fumaça” constantes de Bolsonaro em testar os limites e pesos e contrapesos de nosso sistema democrático. Bolsonaro reza a cartilha de Steve Banon, o “engenheiro do caos” que ajudou a eleger e manter Trump no poder da presidência dos EUA.
A resiliência genocida está ancorada no antipetismo
A ameaça velada de um golpe liderado por Bolsonaro é o pano de fundo para a tática lulopetista de provocar ansiedade no eleitorado, acelerando o processo eleitoral que ainda tem mais de cinco meses de disputa (a campanha oficial sequer teve início) e induzindo que os indivíduos decidam precocemente abandonar suas escolhas de votarem em outros candidatos, conduzidos coercitivamente a aderirem à candidatura de Lula, cujo programa de governo é um “cheque em branco”.
A propósito, essa apelação de um “ato de grandeza” de Ciro Gomes em abdicar de sua candidatura também foi usada por Fernando Henrique Cardoso e pela Folha de São Paulo nos anos de 2015 e 2016, como bem lembrou Wilson Gomes em seu Twitter, para que a presidente Dilma renunciasse o seu mandato para o bem do país. Como sabido, reagiram indignados e contrariados, tanto que Dilma se manteve até o final da condução de seu processo de impeachment. Porém, no caso da candidatura de Ciro Gomes, esta possui um propósito importante nestas eleições, como ele mesmo bem argumentou em seu Twitter: “Sem a minha candidatura, a polarização aumentaria em um momento em que Lula estagnou e Bolsonaro se sustenta. Porque a resiliência do genocida é menos ilógica do que aparenta. Ela está fortemente ancorada no antipetismo”.
Claro que também não podemos subestimar a possibilidade de tentativa de um golpe, contudo, não será contido transferindo todos os votos dos demais candidatos para o principal adversário do presidente, o que só acirraria a justificativa de ação ditatorial de Bolsonaro. O melhor caminho é o que Ciro Gomes expôs no seu programa na última terça-feira (10): “Há indícios claros de que está em curso um golpe contra a democracia, cujo alvo são as próximas eleições. Ou a sociedade e as lideranças políticas tomam providências já, ou chegaremos a um ponto sem retorno”. Ciro continuou advogando que: “É preciso que todos os candidatos, de todos os partidos, sentem imediatamente à mesa para denunciar isto publicamente ao Brasil e ao mundo. Faço esta convocação e espero ser ouvido por todos os demais candidatos”.
Útil ao Brasil é lutar pela democracia e por um Projeto Nacional
A proposta de reunião dos candidatos democratas por Ciro Gomes para denunciarem essa ameaça de golpe feita por Bolsonaro vai de encontro aos interesses de Lula, pois assim conteria a suposta necessidade de transferência de votos em torno de sua candidatura. Desse modo, o convencimento desse “voto útil” – útil aos interesses de Lula e de quem ele representa – só se sustenta através de uma pressão psicológica por uma decisão apressada, sem o tempo adequado para reflexão e avaliação das opções e suas respectivas consequências. É como um vendedor que induz um cliente a comprar uma mercadoria sem pensar direito se deseja ou precisa dela, se de fato é “útil”. A tese do “voto útil”, nesse caso, se trata de um sofisma, que pode ser facilmente refutado em confronto com a realidade política brasileira.
Um voto realmente útil é naquele candidato que os eleitores têm maior preferência relativamente aos demais. Os eleitores de Ciro Gomes não são meros “ciristas malucos que se comportam como se estivéssemos em 1951”, como agressivamente atacou Christian Lynch em seu Twitter. São eleitores muito diferentes, exigem que seu candidato apresente um programa de governo (o mínimo que todos deveriam fazer) e o estudam atentamente. Exigem que não se corrompa através de coalizões fisiológicas sem identificação programática, como os seus principais adversários, Lula e Bolsonaro, firmaram com o Centrão nas suas gestões na presidência. Os eleitores de Ciro não se comportam como “gado”, que não pensa e não possui espírito crítico, “passando pano” para qualquer deslize e desatino de seu caudilho populista favorito. Não é a toa que são chamados de “Turma Boa”. Merecem o máximo respeito e admiração.
*BRESSER-PEREIRA, L. C. Do antigo ao novo desenvolvimentismo na América Latina. Texto para discussão, São Paulo, n. 274, nov. 2010.